“É preciso um olhar diferenciado da gestão da UEA para pessoas surdas”

Nesta segunda-feira, 26 de setembro, o Brasil celebra o Dia das Surdas e Surdos, e Dia Internacional da Língua de Sinais. A data é um importante marco para ressaltar a luta dessa população na garantia dos seus direitos fundamentais e contra preconceitos ainda muito presentes na sociedade.
Para destacar a necessidade de se discutir a temática dentro e fora da universidade, o Sind-UEA entrevistou o professor de Libras Marcos Roberto. Ele é mestre em Letras e Artes pela UEA e doutorando em Linguística pela Universidade de Brasília (UNB). Também é líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Línguas de Sinais na Amazônia (GEPELISA) e coordenador da Coordenação de Políticas para a Pessoa Surda (COPPS/PROGRAD/UEA).
Além de desenhar o cenário atual da população de estudantes surdos, intérpretes e tradutores na UEA, o professor também apontou as ações que ainda são necessárias para melhorar o
aspecto inclusivo da universidade. Confira a entrevista completa abaixo:
1) O que ainda falta para o Brasil ser mais inclusivo com pessoas surdas?
O Brasil é um país de muitas leis, também um lugar onde a efetivação de muitas delas caminha a passos lentos. Temos um grande aparato legal para a acessibilidade linguística de
pessoas surdas, como a obrigatoriedade de intérpretes de Libras e pessoas com conhecimento em Libras em instituições do Poder Público, hospitais, escolas, universidades, empresas
públicas e privadas, etc. Mas o fato é que, mesmo assim os surdos enfrentam muitas dificuldades de comunicação em diversos setores da sociedade. Para o Brasil ser mais acessível para surdos, as leis precisam ser mais executadas e a sociedade ter mais informação e consciência de que é necessário criar meios para que os surdos tenham acesso a todas as informações, autonomia, sua língua mais difundida e usada no país e, principalmente, tenham sua cultura valorizada.
2) E na academia de modo geral, não apenas na UEA, qual o cenário vivido por pessoas surdas no que diz respeito à inclusão?
Em relação à educação dos surdos, em 2021 houve um importante marco histórico nessa comunidade, a Lei 14.191/2021 estabelece a Modalidade de Educação Bilíngue de Surdos,
inserindo essa modalidade na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEn). Assim, os surdos deixam de ser alvos da Educação Especial e possuem garantias de uma
educação linguística que reconhece a Libras como sua primeira língua e o português como segunda língua na modalidade escrita. Essa modalidade educacional tem início ao zero ano e
se estende ao longo de toda a vida.
3) Especificamente sobre a UEA, como o senhor avalia a inclusão promovida pela
universidade aos alunos surdos? Ainda há muito a se fazer? Na UEA encontramos um grande entrave: a presença do profissional Tradutor e Intérprete de Libras no quadro efetivo de servidores. Isso acontece porque no Estado não há esse cargo, logo não podemos pedir vaga de concursos, e também faltam políticos interessados em fazer algo por essa classe no Amazonas. Para solucionar o impasse cumprindo com a legislação, a universidade terceirizou essa mão-de-obra contratando prestadores de serviço. Porém, isso é ruim porque afeta a qualidade do serviço prestado aos acadêmicos surdos e não tem nenhuma segurança profissional para os tradutores e intérpretes. A Universidade hoje conta com 41 intérpretes prestadores de serviços e possui acadêmicos e profissionais surdos em Manaus, Tabatinga, Tefé, sendo nossa maior demanda em Parintins. Além dessa questão do concurso para intérpretes, temos um caminho muito longo a percorrer ainda, como a institucionalização de políticas linguísticas para surdos na UEA que impactam diretamente nas estratégias metodológicas que respeitem as singularidades linguísticas desses alunos, acesso aos programas discentes de ensino e extensão, à pós-graduação, enfim, à todas as atividades acadêmicas, espaço para a criação de laboratórios de Libras com a finalidade de se produzir
materiais bilingues, etc. É preciso um olhar diferenciado da administração da universidade para garantia de direitos fundamentais dessa parcela da população.
4) Além da própria inclusão, o que mais é preciso entrar na discussão nesta Semana dos Surdos?
No dia 26 de setembro é celebrado o Dia Nacional dos Surdos no Brasil. Essa data foi escolhida porque no dia 26 de setembro de 1857, o conde francês Hernest Huet, surdo, foi
trazido por Dom Pedro II para inaugurar a primeira escola de surdos brasileira, no Rio de Janeiro, atualmente conhecida como Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES).
Também, este mês é intitulado como Setembro Azul, pois foi escolhido para promover a visibilidade da comunidade surda brasileira. Em setembro há muitas palestras, congressos,
eventos, festas, etc. A cor azul que define esse mês tem uma história lamentável, durante a II Guerra Mundial, os nazistas amarravam fitas azuis nas pessoas com deficiência para distingui-
las das pessoas sem deficiência. Os surdos ressignificaram essa cor para transformá-la em símbolo de luta por uma sociedade mais acessível linguisticamente e justa. Não se trata de
discutir apenas sobre acessibilidade, mas também celebrar as conquistas dos direitos da comunidade surda ao longo do tempo e organização política desse povo para promover
conscientização sobre sua língua e sua cultura. É importante destacar que, historicamente, os surdos travaram e travam uma luta pela extinção da visão da deficiência, do capacitismo. A
comunidade surda não se reconhece como deficiente, mas como um povo que se constitui como minoria linguística e cultural. Vale ressaltar também que, embora a legislação trate
apenas da Libras, a comunidade surda em todo o país é heterogênea, inclusive sobre a língua. Há centenas de línguas de sinais no Brasil que se difere da Libras, como as línguas utilizadas
por surdos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, etc. Esses surdos que não são usuários da língua de sinais institucionalizada também necessitam ser visibilizados.
5) Libras ainda é uma língua muito atribuída às pessoas surdas, apesar de ser outra maneira de se comunicar, assim como a língua portuguesa. A quê o senhor atribui esse baixo uso de Libras por pessoas não surdas?
Ao contrário do que muitas pessoas pensam, o Brasil não tem a Língua Brasileira de Sinais como segunda língua oficial, a única língua oficial do país é o português, infelizmente. A Libras é uma língua oficializada por meio da Lei Nº 10.436/2002 como a língua da comunidade surda brasileira. Mesmo com esse reconhecimento, uma grande parcela da população desconhece a Libras, embora ela tenha sido alvo de interesse crescente nos últimos 10 anos pela sociedade. É preciso que as políticas linguísticas da Libras sejam mais implementadas para que haja uma difusão maior, como a inserção da Libras como disciplina obrigatória desde o ensino fundamental, os meios de comunicação em massa abordarem mais a temática e fazer uso dela, bem como todos os segmentos da sociedade.
6) Como foi o seu próprio encontro com essa temática? E como tem sido a sua experiência enquanto docente de Libras e coordenador de políticas para a pessoa surda
e do Gepelisa?
O meu encontro com a Libras se deu aos 12 anos de idade. Participava de uma determinada religião e lá tinha uma família de cinco irmãos surdos, sempre tive muita curiosidade para
conversar com eles, comecei a me aproximar, em seguida fui transferido para a mesma escola, nosso laço de amizade foi fortalecido e aprendi assim, na convivência diária com eles. De maneira natural comecei a interpretar as cerimônias religiosas e, quando me dei conta já atuava como intérprete profissional e, em seguida, como docente de Libras. Como docente, tenho percebido que as pessoas têm tomado mais consciência sobre a necessidade de aprender Libras dentro da prática profissional de cada curso, isso é muito bom para a comunidade surda, além disso, estes futuros profissionais já serão diferentes pela oportunidade que possuem de aprender um pouco de Libras na graduação. Sobre a Coordenação de Políticas para a Pessoa Surda, embora ainda não institucionalizada de fato na UEA, atuamos na garantia de que os surdos possam ter acesso à universidade de forma acessível. Além do acesso, precisamos garantir a permanência dessas pessoas na universidade, por meio de aulas e atividades acadêmicas acessíveis, políticas de assistência estudantil e atendimento especializado bilíngue. Já o Grupo de Estudos e Pesquisas de Línguas de Sinais na Amazônia (GEPELISA), da UEA em parceria com o IFAM, foi o primeiro grupo de pesquisa sobre línguas de sinais vinculado à Capes no Estado, tem como objetivo fortalecer o campo da educação de surdos e línguas de sinais no Amazonas. Participam do grupo acadêmicos, professores de surdos e de Libras surdos e não surdos, bem como tradutores e intérpretes de Libras e Português.