O ouro, a carne e o sangue: sobre aprender com as araras

Por Leonardo Peixoto*
Após repercussão de que jogadores da seleção brasileira estiveram em um famoso restaurante no Catar ingerindo carne folheada a ouro 24 quilates, a página Eu Atleta, veiculada no site ge.globo.com, publicou no dia 30/11/2022, uma matéria intitulada “Carne folheada a ouro: sucesso entre jogadores, mineral afeta a saúde?”. O nutricionista e farmacêutico Rodrigo Abdala foi consultado para analisar os impactos do consumo do ouro no organismo, na saúde ou no desempenho esportivo dos atletas. Segundo o nutricionista: “o ouro não participa de nenhuma reação química no corpo”, diferentemente de outros minerais que são necessários ao organismo, como o ferro, o cobre e o zinco.
O especialista conclui afirmando que apesar de ter sido utilizado em algum momento como tratamento para artrite reumatoide, e atualmente em alguns tratamentos contra o câncer, a primeira prática foi abandonada por não apresentar resultados suficientes e a segunda é utilizada sem comprovação.
Em um grupo de amigas, o fato também repercutiu. Uma amiga encaminhou uma manchete intitulada “Carne folheada a ouro faz sucesso entre seleções da Copa do Mundo”, com um comentário “Isso é escandaloso”, ressaltando que o escândalo não está no consumo feito pelos jogadores da seleção, mas na existência de tal prática. “Considero uma indecência comer ouro nesse mundo”.
Outra amiga postou “acho que é um detalhe a mais na trama capitalista que tem signos de opulência e luxo para consumo geral. Também não acho que deveriam existir Ferraris no mundo. Nem joias da coroa da Rainha da Inglaterra, com diamantes roubados da África. Nem diamantes, na verdade. Davi Kopenawa explica o absurdo que é cavar buracos para tirar o que está no fundo da terra. Isto só pode resultar em problema. Então ele recomenda que ninguém compre mais ouro. Fico pensando que historicamente o ouro foi motivo de desastre, genocídio, exploração. Comer um bife folheado a ouro é só uma maneira de fantasiar uma suposta participação na riqueza dos magnatas. É como as correntes de ouro no pescoço, os anéis que se vão, mas ficam os dedos, as torneiras de ouro dos banheiros milionários. É parte da ostentação que move a engrenagem capitalista”.
A fala da segunda amiga me fez lembrar de um dos muitos aprendizados que tenho praticadopensado na tríplice fronteira amazônica (Brasil/Peru/Colômbia) com o Cabildo de Los Pueblos Indígenas Urbanos de Letícia – CAPIUL, um dos parceiros do Grupo de Pesquisa Redes Indígenas: povos indígenas e redes educativas, que coordeno.
Em uma das primeiras rodas de conversas com os mais velhos indígenas aprendi que só devemos pegar da natureza o que a natureza nos dá. Aprendi que a terra é a nossa mãe e que da terra emergem as coisas que são necessárias para transformação dos males do mundo.
Nesta forma de pensarsentir o mundo, o ouro e o petróleo seriam exemplos de minerais que não brotam espontaneamente da natureza e, por isso, homens e mulheres não deveriam fazer a terra sangrar na busca dessas “preciosidades”.
“Ao fazer a terra sangrar, é como se estivéssemos ferindo a nossa própria mãe. Que filho quer ver a sua mãe sangrar?” – perguntaram-me. De acordo com estas epistemologias indígenas, o resultado de tamanha violência contra nossa própria mãe é fazer com que os males emerjam com o ouro e o petróleo. “Você já frequentou um território depois do garimpo? O que resta?” – continuaram a me indagar.
Com esse aprendizado, quando volto à pergunta feita pela matéria do Eu Atleta, concluo que a perspectiva de análise centrada nos indivíduos nos leva a dar respostas equivocadas sobre os males do ouro à saúde dos organismos. Temos muitos resultados que mostram que o ouro mata. Em Atalaia do Norte (AM), na região da Terra Indígena Vale do Javari, o mundo acompanhou com perplexidade os assassinatos de Dom Phillips e Bruno Pereira. Bruno (Toyoh para os tüküna/kanamari) era considerado um marinawa, um aprendente e um protetor.
Enquanto servidor público da FUNAI, atuou na proteção do território indígena Vale do Javari, contra a invasão, contra o garimpo e contra a pesca ilegal. Na ocasião, um vídeo que circulou o Brasil e o mundo foi o de Bruno cantando com os tüküna/kanamari. Segundo José Ninha, professor tüküna/kanamari, o canto entoado por Bruno era o canto da arara. “A arara não destrói a natureza, ela se alimenta das plantas e as sementes que caem vão brotando e fazendo nascer mais coisas.
Bruno não protegia a floresta apenas para si, mas para o mundo.” Penso ser esta uma das principais e mais importantes aprendizagens, que muda a nossa maneira de sentir e viver no mundo. Não é apenas considerar o impacto das nossas ações para a nossa vida individual, mas para a vida coletiva, para o mundo. Esperanço que nós possamos aprender a nos alimentar como as araras: sem ouro e sem sangue.
No vídeo da seleção, no restaurante, os jogadores que aparecem comendo a carne com ouro são jovens negros, oriundos das classes populares. A alegria deles é contagiante. Por que é um escândalo quando a nossa gente “chega lá”? Não é de hoje que sabemos que as pessoas estão comendo ouro pelo mundo. Por isso, reitero: se temos que refletir sobre o impacto coletivo das nossas ações no mundo, também precisamos ter a consciência de que não resolveremos o problema apenas condenando as ações individuais e os indivíduos.
Se queremos aprender a nos alimentar como as araras, precisamos aprender com os povos indígenas a viver de maneira mais ecológica, mas sem alimentar as nossas vaidades individuais. Finalizo nossa conversa com as sábias palavras de Ailton Krenak, um dos principais filósofos brasileiros:
“Eu concordo que precisamos nos educar sobre isso, mas não é inventando o mito da sustentabilidade que nós vamos avançar. Vamos apenas nos enganar, mais uma vez, como quando inventamos as religiões. Tem gente que se sente muito confortável se contorcendo na ioga, ralando no caminho de Santiago ou rolando no Himalaia, achando que com isso está se elevando. Na verdade, isso é só uma fricção com a paisagem, não tira ninguém do ponto morto. Trata-se de uma provocação acerca do egoísmo: eu não vou me salvar sozinho de nada, estamos todos enrascados. E, quando eu percebo que sozinho não faço a diferença, me abro para outras perspectivas. É dessa afetação pelos outros que pode sair uma outra compreensão sobre a vida na Terra.” (KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das letras, 2020. pp. 103-104).
*Pedagogo, mestre e doutor em Educação. Professor Adjunto do Centro de Estudos Superiores de Tabatinga(CESTB) e do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGEd) da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Bolsista do Programa de Apoio à Pós-Doutores – PRODOC/FAPEAM no Programa de Pós-graduação em Educação (Proped) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bolsista de produtividade em pesquisa da UEA.